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Ditadura ou capitalismo selvagem: quem roubou o nosso queijo?

Corrado Gini foi o italiano que inventou a métrica da desigualdade de renda entre as pessoas: quanto mais perto de 1, mais desigual o país: quanto mais perto de 0, menos desigual é o país. O que tem a ver o coeficiente ou índice de Gini com os 53 mil assassinatos anuais no Brasil?
O seguinte: os países de capitalismo evoluído, distributivo e altamente civilizados (Dinamarca, Noruega, Japão, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Holanda, Bélgica, Coreia do Sul etc.) não só contam com melhor distribuição de renda (ou seja: com alta renda per capita – Gini em torno de 0,25 e 0,35) como possuem, em regra, baixíssimo índice de violência: menos de 2 assassinatos para cada 100 mil pessoas. Quanto mais distribuição de renda (quanto mais igualdade material entre todos), menos concentração da riqueza nas mãos de poucos e menos violência.
Dentre os países com capitalismo evoluído, os EUA são um dos mais violentos: quase 5 assassinatos para cada 100 mil pessoas. A desigualdade de renda lá é brutal. Seu índice Gini hoje, consequentemente, é muito alto (0,45); em 1960, era de 0,34; em 2005, era de 0,43. O preço da desigualdade, em regra, é a violência.
Os países de capitalismo selvagem e primitivo (extrativista e patrimonialista, como o Brasil, que tem 27,1 assassinatos para cada 100 mil pessoas) apresentam altíssima concentração da renda nas mãos de poucos e baixíssima distribuição. Consequência: são muito mais violentos. Atingem violência epidêmica (como é o caso do Brasil). Veja o gráfico aqui
Quanto mais forte a concentração da riqueza do país nas mãos de poucas pessoas (conforme o sociólogo Jessé Souza, 70% da renda nacional pertence a pouquíssimas famílias, dividindo-se os 30% restantes entre 200 milhões de brasileiros), mais selvagem e/ou concentrador é o modelo capitalista. Quanto mais selvagem e primitivo o capitalismo, mais vingativas e crueis são suas políticas criminais, marcadas pela ausência de políticas públicas socioeconômicas e educacionais, ineficácia do império da lei, abuso na edição de leis penais emergenciais, frouxo controle dos órgãos repressivos, cultura da violação massiva dos direitos humanos, irracionalidade da repressão (emoção e paixão), desrespeito aos direitos e garantias fundamentais etc.
O Brasil demorou 50 anos para começar a recuperar a calamidade gerada pela política de arrocho salarial do regime militar e pela inflação. Somente em 2012 (Gini 0,51) voltamos para o patamar de 1960 (0,54). Durante a ditadura, houve explosão da concentração de renda (Gini de 0,58 em 1970, 0,59 em 1979, 0,64 em 1989), recrudescimento da desigualdade social e um déficit social enorme. Você já conseguiu quebrar a casca do seu ovo, você já consegue, desencapsulado, perceber claramente porque a ditadura militar foi apoiada pela burguesia capitalista, por grande parte da população e, sobretudo, pelos meios de comunicação. Houve uma aceleração incrível na concentração de renda, tal como manda a cartilha do capitalismo selvagem (que, no caso brasileiro, é patrimonialista, pois envolve a burguesia e o Estado). Quem pagou essa conta? O arrocho salarial, a inflação e a perda do poder de compra do salário mínimo (que até hoje não se recuperou totalmente).
Ou seja: os de sempre, os trabalhadores massacrados pelo capitalismo primitivo e extrativista, que apoiou os militares no poder para em troca sugar parasitariamente o trabalho alheio neoescravagista em benefício da sua riqueza. Já era assim com o trabalho escravo em 1532, quando foi fundada em São Vicente por Martim Afonso a primeira usina de açúcar. Nos países de capitalismo selvagem o queijo e o corpo dos trabalhadores (sua mão de obra e sua vida) nunca deixam de ser “roubados”: seja nas colônias, nas ditaduras ou nas democracias.

Luiz Flávio Gomes
Publicado por Luiz Flávio Gomes
Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz..

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